Pelo fim da comida como religião, ou toxina, ou milagre, ou valor moral
Nutrição

Pelo fim da comida como religião, ou toxina, ou milagre, ou valor moral




Por Marle Alvarenga, nutricionista

Embora obviamente a relação entre alimentação e saúde seja bem estreita, a falta de bom senso é a tônica da comunicação sobre os fatos, e muitas pessoas não têm “sensitividade à dose”1 e não saem da dicotomia na classificação dos alimentos. Muitas substâncias podem causar mal em grandes quantidades, o que não quer dizer que não possam ser ingeridas em nenhuma quantidade.

A comida não pode ser classificada em boa versus ruim, suja ou limpa, toxica ou pura... Este tipo de linguagem causa pânico, neuroses e muita desinformação.

A ideia de pureza e outras crendices - e quase misticismo - relacionadas à alimentação remetem a crenças religiosas. Relatórios vindos do Annual Congress of the Humanities and Social Sciences Conference que aconteceram no 1o semestre deste ano discutiram como esta explosão de “comer limpo” tem criado uma hierarquia moral da comida.Pesquisadores como Gillian McCann, professora de religião e cultura, apontam como é curioso que isto ocorra de maneira coincidente com o declínio da religião na sociedade, com as pessoas procurando valores familiares como pureza, ética e bondade. Ela afirma que isto pode ser inconsciente, mas é de certa forma motivado por “impulso religioso”. Só que tudo isto ocorre buscando um preenchimento que não pode ser alcançado com comida!2

Se um a pessoa se julga “pura”, os outros são impuros. A rigidez sobre o que se come leva ao julgamento do que os outros comem – e até sobre como eles são. Tal foco se relaciona também com “virtudes pessoais”, a ideia de disciplina e controle do corpo. Gillian McCann afirma que parte do apelo do “comer virtuoso” é um senso de controle. Mais curioso é pensar que tudo isto remete ao controle do corpo, o que se relaciona aos transtornos alimentares – objeto de pesquisa e trabalho do Genta. As questões religiosas estão também na origem dos relatos de anorexia nervosa!3 Mas, em pleno século 21, com todo avanço da ciência, cá estamos nós de novo moralizando a comida, e complicando tudo com pseudociência, e “em nome da saúde” – o nutricionismo e ortorexia nervosa estão aí para nos provar isto.a

Esta discussão também é feita por Alan Levinovitz, afirmando que a ciência é apenas a superfície da discussão, mas cheia de “mitos e superstições pra reforçar um discurso do bem contra o mal numa ilusão de bem estar”.5

Sim, o ambiente alimentar é muito mais complexo hoje, vale conhecer mais sobre a comida, porque nos distanciamos dela - o que contribui para gerar medo e dúvida. Mas não há uma dieta milagrosa, assim como não há a dieta que “intoxica”; nutrição não é religião, e os valores morais não podem reger o que é ciência.

A comida deve ser pensada sempre no contexto da dieta como uma todo6, incluindo aí seus significados sociais, cultuais e emocionais – além dos fisiológicos.

Por isto defendemos a boa relação com a comida, e o papel do prazer neste debate. De neuroses o mundo já está cheio...

Referências:

1)       Rozin P, Ashmore M, Markwith M. Lay American conceptions of nutrition: dose insensitivity, categorical thinking, contagion, and the monotonic mind. Health Psychol.1996;15:438-47.

2)       http://news.nationalpost.com/life/food-drink/the-new-religion-how-the-emphasis-on-clean-eating-has-created-a-moral-hierarchy-for-food

3)       Weinberg C, Cordás TA. Do altar as passarelas – da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.

4)       http://www.npr.org/sections/thesalt/2015/06/11/412973926/how-diet-gurus-hook-us-with-religion-veiled-in-science

5)       Nitzke S, Freeland-Graves J. American Dietetic Association. Position of the American Dietetic Association: total diet approach to communicating food and nutrition information. J Am Diet Assoc. 2007;107:100-8.

 

Para saber mais:

a)     Martins MCT, Alvarenga MS, Vargas SVA, Sato KSCJ, Scagliusi FB. Ortorexia nervosa: reflexões sobre um novo conceito. Revista de Nutrição. 2011; 24:345-357; Scrinis G. Nutritionism: The Science and Politics of Dietary Advice. Columbia University Press. 2013.

Quelier F. Gula – história de um pecado capital. São Paulo: Senac, 2011.

http://www.parents.com/recipes/scoop-on-food/can-we-please-stop-calling-food-toxic/

Levinovitz A. A Mentira do Gluten - E outros mitos sobre o que você come CDG Editora, 2015.



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