Nutrição
Mídia, porque você alimenta a neura com a comida?
Por Marle Alvarenga, nutricionista
Recente matéria publicada na Revista Super Interessante ("A dieta da ciência") traz termos e frases bastante neuróticas sobre comida, eis algumas pérolas:
“alimentos-porcaria”; “Batata frita, chocolate, refrigerante, bolo... todos eles fazem parte da facção do pó branco – farinha, açúcar e sal, as cocaínas da cozinha”; “drogas alimentares”; crescimento da pança”; “o pão nosso de cada dia também não é nenhum santo”; “é preciso manter o consumo no cabresto”; “comer porcarias gostosas”; “a gente sabe que quase todo mundo prefere comer lasanha em vez de arroz cateto com amoras silvestres mesmo se levar um choque cada vez que optar pelo prato gordo” – atenção Sr. Jornalista, não existe comida gorda, como de forma bem mais humorada escreveu Nina Lemos da TPM (http://revistatpm.uol.com.br/revista/123/badulaque/tpm-adverte-nao-existe-comida-gorda.html).
Será que este tipo de foco ajuda as pessoas a pensarem e comerem de forma mais saudável? Acredito que não!
Começando pelos fatos, sim, sabemos hoje sobre os efeitos de algumas substâncias em nosso cérebro e mecanismos de compensação dopaminérgica - entre outros, mas daí a falar em comidas como drogas ou dependência de comida há um longo caminho.
Compartilho da compreensão da nutricionista Evelyn Tribole (http://www.evelyntribole.com), autora de "Intuitive Eating". Sobre o assunto: o gatilho para o chamado “vício em comida” é a dieta, mesmo em protocolos clássicos criando “dependência de comida” em ratos, o protocolo necessitou de um período de restrição alimentar (Hoebel et al., 2009), um detalhe importante, muitas vezes não mencionado.
Preocupamos-nos com o fato das pesquisas sobre “vício em comida” não focarem nas causas ocultas das compulsões-restrições. Em muitos dos estudos de imagem cerebral, os protocolos não excluem a dieta, contudo se sabe muito bem que a fome ou privação de alimento aumenta o valor de compensação da comida (Carr, 2011; Polivy et al.,1994; Stice et al., 2008; Vaca & Carr, 1998; Yang, 2010).
Segundo ponto, sim, é necessário rever nosso consumo de gordura e açúcar, por isto a tese do Dr. Carlos Monteiro da USP sobre os ultra processados faz sentido (http://www.wphna.org/wn_commentary_ultraprocessing_nov2010.asp e http://www.wphna.org/2011_aug_wn4_cam9.htm).
MAS, será o prazer antecipatório ou compensatório da comida em nossa vida um problema? Será preciso um olhar tão neurótico sobre isto?
Estudo de Salimpoor et al. (2011) demonstra que nosso cérebro libera dopamina em resposta ao prazer da música (também de maneira antecipatória inclusive) na mesma região do cérebro implicada no componente eufórico de psicoestimulantes como cocaína. Vamos propor a dependência em música? Restringir seu consumo?
O sistema dopaminérgico está implicado no reforço e motivação e media recompensas ligadas ao prazer para os humanos como comida, dinheiro, drogas, música; estes estímulos são reforçadores biológicos necessários à sobrevivência; mas nós os humanos, temos capacidade de obter prazer de estímulos mais abstratos, não necessariamente ligados à sobrevivência. Isto nos distingue e não é nem de longe ruim.
Focando mais na comida especificamente, Rozin et al. (1999), em estudo clássico – e fundamental - discute que o prazer em comer está relacionado à saúde e que o stress com a comida é contraprodutivo.
Como nutricionistas que pensam a comida de forma biopsicossocial, nós do GENTA, somos contra a neurose com a comida promovida nos dias de hoje. A matéria traz depoimentos de alguns profissionais, neurologista, bioquímico e entre eles um “cientista de alimentos”, que profissão é esta? Onde se estuda isto?
Nós pensamos a comida como o alimento resignificado para o ser humano; segundo a ANVISA, pílulas de vitaminas e minerais são alimento, gelo é alimento, probióticos são alimentos... Mas só o ser humano RESSIGNIFICA o alimento, isto novamente, nos distingue e é uma benção, não uma maldição.
É preciso discutir melhor esta questão e oferecer aos profissionais de mídia sugestões e conselhos de tradução da ciência de forma mais clara e menos neurótica ao grande público, trabalhos como o do Food Insight são urgentes por aqui.
A mesa redonda da Nutri Jr – FSP USP (“Comunicar sobre alimentação e nutrição na mídia: necessidades e riscos”), que acontece no próximo dia 07/11, vem bem a calhar (http://www.facebook.com/photo.php?fbid=392568364144898&set=a.180422662026137.41672.100001752138385&type=1&theater)
Participe conosco desta discussão, deixe sua opinião!
Referências:Hoebel BG, Avena NM, Bocarsly ME, Rada P. Natural addiction: a behavioral and circuit model based on sugar addiction in rats. J Addict Med 2009; 3:33–41.
Polivy J, Zeitlin SB, Herman CP, Beal AL. Food Restriction and Binge Eating: A Study of Former Prisoners of War. Journal of Abnormal Psychology 1994, Vol. 103, No. 2,409-411.
Yang Q. Gain weight by “going diet?” Artificial sweeteners and the neurobiology of sugar cravings. Yale J Biology Med 83 (2010), pp. 101-108.
Stice E, Davis K, Miller NP, Marti CN. Fasting Increases Risk for Onset of Binge Eating and Bulimic Pathology: A 5-Year Prospective Study. J Abnorm Psychol. 2008; 117(4): 941–946.
Carr KD. Food scarcity, neuroadaptations, and the pathogenic potential of dieting in an unnatural ecology: Binge eating and drug abuse. Physiology & Behavior 104 (2011) 162–167.
Vaca SC, Carr KD. Food Restriction Enhances the Central Rewarding Effect of
Abused Drugs The Journal of Neuroscience, 1998, 18(18):7502–7510.
Salimpoor VN, Benovoy M, Larcher K, Dagher A, Robert J Zatorre R. Anatomically distinct dopamine release during anticipation and experience of peak emotion to music. Nature neuroscience, 14 (2): 2011.
Rozin P, Fischler C, Imada S, Sarubin A, Wrzesniewski A. (1999) Attitudes to food and the role of food in life in the USA, Japan, Flemish Belgium and France: possible implications for the diet-health debate. Appetite, 33, 163-80.
Para saber mais:Bento D. The plausibility of sugar addiction and its role in obesity and eating disorders Clinical Nutrition 29 (2010) 288–303.
Fawcett J. Free Will vs. “Addiction”. Psychiatric Annals 41:10, 2011.
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