Nutrição
A tirania das dietas
Por Marle Alvarenga, nutricionista
Aqui estou, falando de dieta de novo, porque o tema é inesgotável!! (infelizmente).
O excelente “A tirania das dietas”, da historiadora inglesa Louise Foxcroft, embora seja uma leitura muito interessante, me deixou ainda mais deprimida sobre o tema.
Se pensamos que a indústria do emagrecimento floresceu especialmente depois dos anos 70 (mais 80 no Brasil), a história mostra que tudo começou muito antes, e com coisas muito similares ao que vemos ser reeditado hoje.
“As dietas da moda são pouco mais que inúteis. São as que rendem melhores negócios, e pode-se dizer, as que mais causam mal, e já existiam bem antes de sua bisavó” ("A tirania das dietas", Louise Foxcroft, Ed. Três Estrelas, 2013)
Avicena, médico persa, aconselhava os gordos e doentes a comer apenas comida pesada, com pouco valor nutritivo (!), e ajudar o corpo a deslocá-la com laxantes e exercícios. Wadd, um cirurgião e “médico de ricos” publicou em 1810 as “Observações superficiais sobre a corpulência ou obesidade considerada como doença”, e na sua pesquisa aponta que comer sabão a noite era popular, como emético e laxante.
As dietas de baixo carboidrato surgiram já em 1863, primeiro propostas por um agente funerário (!), William Banting, e depois por médicos, como Nathaniel Davis, que publicou “Comida para gordos: tratado sobre a corpulência com dieta para sua cura”, e que entre suas categorizações, mencionou que “a pessoa burra, pesada, não intelectualizada ou idiota costuma ser gorda e flácida” (!)
O controle da gordura aparece em textos antigos ligados à ética. No "Tratado sobre o poder dos alimentos", o médico grego Galeno de Pérgamo (século II) conta como reduziu pessoas de “corpulentas” a um “tamanho decente”.
Os livros com descrições de quem emagreceu dando suas dicas, apareceram já em 1883, e sobre isto Foxcroft escreve:
“Durante o século XIX os médicos consolidaram uma abordagem mais científica das dietas... Embora esse processo contestasse o curandeirismo e os conselhos falaciosos disponíveis, ele não os substituiu de todo, e tais práticas persistiram apropriando-se cada vez mais da ciência a fim de emprestar autoridade e credibilidade a ideias e produtos espúrios.”
O preconceito e estigmatização do excesso de peso - descubro eu - são também muito mais antigos do que se acredita. Sempre houve uma percepção de que quem está acima do peso não é capaz de ter autocontrole. Seria alguém fraco de espírito, não confiável.
Até Brillat-Savarin - oh, decepção! –, o homem que cunhou o termo gastronomia e que disse que "a descoberta de um novo prato confere mais felicidade na humanidade que a descoberta de uma nova estrela” ("A fisiologia do gosto", Jean-Anthelme Brillat-Savarin, Cia das Letras, 1995), também escreveu: “todo mundo deseja evitar a corpulência ou livrar-se dela se, infelizmente, a tiver adquirido”, com a recomendação de “uma abstinência mais ou menos rigorosa de todos os alimentos farináceos tenderá a diminuir a corpulência”. Para tanto, patenteou o “Cinto Anticorpulência” (!), e dizia que era preciso fugir da tentação e lembrar que se tratava de uma questão moral (!).
E vejam só, Thomas Short, médico do século XVII, escreveu que “nenhuma outra era produziu mais casos de corpulência do que a nossa”... Imagine se ressuscitasse no ano 2014?!
Alguém poderá dizer que hoje não temos maluquices como as descritas acima, mas sim, temos parecidas e piores. Já escrevemos sobre algumas neste blog, e absurdos surgem o tempo todo: como o oftalmologista que vende bomba junto de seu plano fitness; a dermatologista que deu uma dieta para minha paciente com histórico de bulimia nervosa, com a lista de proibidos com lactose e glúten – sempre eles –, mas também abacaxi (“veneno”, estava escrito); e dentre as dicas preciosas, consumir muita água de coco (“antiinflamatório, evita infecções, até AIDS”). Parece piada, mas não é - é sério e triste.
E agora me chega a notícia de um grupo de ENGENHEIROS nerds do Vale do Silício que inventaram a bebida
well balanced "pra você nunca mais se preocupar com comida”, a base de maltodextrina, farinha de aveia e proteína de arroz + vitaminas e minerais, goma acácia, lecitina e sucralose (!!), e ninguém mais perder tempo com esta coisa besta que é comer!! Devem em breve adaptar a fralda geriátrica também, para ninguém perder tempo com...
Parece piada? Conseguiram US$ 1mi via crowdfunding para produzir a coisa em menos de 3 horas (!!!), e 10.000 interessados em comprar só com a ideia (veja aqui).
Vou pingar meu colírio alucinógeno!
E se não dietas, o quê? Trabalhamos com uma série de estratégias e técnicas diferenciadas e com evidência científica (sobre as quais já escrevemos aqui), como o comer intuitivo, mindful eating, que fazem parte do aconselhamento nutricional, que visa alcançar verdadeira mudança de comportamento e relação com comida. Só isto pode garantir manutenção efetiva de um peso saudável.
Termino também com a autora:
“Somos uma cultura em busca da dieta perfeita, e como prova disso há uma porção de pessoas infelizes e inseguras por aí... Precisamos repensar, retomar uma abordagem simples, uma dieta que seja fisiológica e psicologicamente saudável”.
“Mas somos distraídos e seduzidos por promessas de resultados rápidos e milagrosos. Perdemos peso rapidamente, voltamos a engordar, então partimos para outra solução mágica. Essa é uma fórmula alimentada pela indústria da dieta para manter as pessoas gordas”.
Estudos selecionados sobre dieta:
Bacon L and Aphramor L (2011).Weight Science:Evaluating the Evidence for a Paradigm Shift. Nutrition Journal, 10:9. [Free full text]. http://bit.ly/f4CKOK
Daníelsdóttir S, Burgard D and Oliver-Pyatt W. (2009).Academy of Eating Disorder 2009 Guidelines for Childhood Obesity Prevention Programs. http://www.aedweb.org/policy/index.cfm
Katan, Martijn B. (2009). Weight-Loss Diets for the Prevention and Treatment of Obesity NEJM, 360: 923-925
Tsai, AG et al. (2005). Systematic review of commerical weight loss programs. Annals Internal Medicine, 42:56.
Ganho de peso, risco aumentado para compulsão e transtornos alimentares
*Dulloo AG et al (2012). How dieting makes some fatter: from a perspective of human body composition autoregulation. Proceedings Nutrition Soc. 71:379-389.
Field AE et al. (2003). Relation Between Dieting and Weight Change Among Preadolescents and Adolescents. Pediatrics, 112:900-906.
Liechty JM & Lee MJ (2013). Longitudinal predictors of dieting and disordered eating among young adults in the U.S. International Journal of Eating Disorders. Article first published online: 28 AUG 2013 | DOI: 10.1002/eat.22174
G C Patton et al. (1999). Onset of adolescent eating disorders: population based cohort study over 3 years. British Medical Journal, 318:765-768.
Mann, T. (2007). Medicare’s search for effective obesity treatments: Diets are not the answer. Am Psychologist, 62(3): 220-33.
Neumark-Sztainer D et al. (2006).Obesity, disordered eating, and eating disorders in a longitudinal study of adolescents: how do dieters fare five years later? J Am Diet Assoc, 106(4):559-568.
Neumark-Sztainer D et al. (2011). Dieting and Disordered Eating Behaviors from Adolescence to Young Adulthood: Findings from a10-Year Longitudinal Study. J Am Dietetic Assoc 111:1004-11.
Pietiläinen, K.H. et al. (2012). Does dieting make you fat? A twin study. Intl J Obesity, 1-9.
Polivy, J. (1996).Psychological consequences of food restriction. J Am Dietetic Assoc 96(6):589-592.
Polivy, J., Zeitlin, S. B., Herman, C. P., & Beal, A. L. (1994). Food restriction and binge eating: A study of former prisoners of war. Journal of Abnormal Psychology, 103(2), 409-411.
Saarni, S. E. et al (2006). Weight cycling of athletes and subsequent weight gain in middleage. International J Obesity, 30: 1639–1644.
Thompson, JL et al. (1996). Effects of diet and diet-plus-exercise programs on resting metabolic rate: a metaanalysis. Intl. J Sport Nutrition,(6):41-61.
Tomiyama, A. et al (2010). Low Calorie Dieting Increases Cortisol. Psychosom Med, 72:357-364.
Yang Q. (2010). Gain weight by “going diet?” Artificial sweeteners and the neurobiology of sugar cravings. Yale J Biology Medicine, 83:101-108.
Restrição e Dieta aumentam valor de recompensa do alimento
Cabeza de Vaca & Carr (1998). Food Restriction Enhances the Central Rewarding Effect of Abused Drugs J Neuroscience, 18(18):7502–7510.
Carr (2011). Food scarcity, neuroadaptations, and the pathogenic potential of dieting in an unnatural ecology: Binge eating and drug abuse. Physiology & Behavior, 104:162–167.
Massey A. & Hill A.J.(2012). Dieting and food craving. A descriptive, quasi-prospective study Appetite. Jun;58(3):781-5.
*Stice E. et al (2013). Caloric deprivation increases responsivity of attention and reward brain regions to intake, anticipated intake, anticipated intake, and images of palatable foods. NeuroImage. 67(15):322–330.
Compulsão Alimentar e alimentos proibidos
Kristeller JL, & Wolever RQ (2011). Mindfulness-based eating awareness training for treating binge eating disorder: the conceptual foundation. Jan 2011; Eating disorders, 19 (1), 49-61.
Smitham.L. (2008).Evaluating an Intuitive Eating Program for Binge Eating Disorder: A Benchmarking Study. University of Notre Dame, 26 November 2008.
loading...
-
Sua Postura é Iatrogênica?
"Em primeiro lugar, não cause dano" Por Marle Alvarenga, nutricionista Neste último sábado, a Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia (CEPPAN) promoveu um evento para discutir prevenção de transtornos alimentares....
-
Se Dê Conta 2013: 53 Fotos, 2 Semanas E Algumas Mensagens
Por Maria Luiza Petty, Nutricionista Em mais um ano, o Genta (Grupo Especializado em Nutrição e Transtornos Alimentares) conduziu a Semana de Conscientização sobre Transtornos Alimentares e Obesidade - Se Dê Conta. Desta vez, a proposta era nova:...
-
Peso Ideal
Por Alessandra Fabbri, nutricionista http://www.haescommunity.org/ Moral da história: aceite o seu corpo, aceite a diversidade. Faça aquilo que você gosta. Não deixe de fazer nada, como comprar roupas ou viajar, por causa do seu peso ou forma corporal...
-
Dietas Engordam
Por Fernanda Timerman, Nutricionista. No último post, mostramos 2 dietas que foram lançadas recententemente e que são extremamente radicais e invasivas: (1) a dieta enteral KEN ou cetogênica (mais popularmente conhecida como "dieta da noiva") e (2)...
-
Mídia, Porque Você Alimenta A Neura Com A Comida?
Por Marle Alvarenga, nutricionista Recente matéria publicada na Revista Super Interessante ("A dieta da ciência") traz termos e frases bastante neuróticas sobre comida, eis algumas pérolas: “alimentos-porcaria”; “Batata frita, chocolate, refrigerante,...
Nutrição