Qual o rumo da alimentação moderna?
Nutrição

Qual o rumo da alimentação moderna?



Participação especial da nutricionista Lia Buschinelli

Recentemente estive em um congresso de nutrição funcional. Nunca havia participado de um evento com este enfoque, então acho interessante registrar as impressões e refletir sobre a nutrição do futuro.

Surpreendeu-me o número de estandes exibindo produtos que prometem emagrecimento. Considerando o cenário atual de sobrepeso e obesidade na população brasileira, que está praticamente na casa dos 50%, nada mais coerente do que o aumento da oferta deste tipo de produto.

O que me intriga é que a maior parte deles possui basicamente 2 formas de ação: ou aumentam a saciedade, reduzindo o apetite e consequentemente a ingestão alimentar, ou são termogênicos, portanto aumentariam o gasto energético diário, aumentando a “queima de calorias”.

Degustei diversos destes produtos, e o que vou escrever a seguir representa nada mais do que a minha opinião pessoal, sem qualquer comprovação científica duplo-cega randomizada controlada, que os fabricantes insistem em nos apresentar para que tenhamos misericórdia dos produtos anunciados. Não vou entrar no mérito da comprovação científica duvidosa, pois isso daria assunto para uma tese de mestrado. Resumindo, não é porque saiu no Globo Repórter ou na Veja que é verdade.

Começando pelo shake sabor chocolate sem açúcar, sem lactose, sem gordura e sem glúten. Ao experimentar, a única coisa que lembra o chocolate é a cor. Sabor péssimo, aguado e sem graça. Ouvi comentários do tipo “é preciso beber gelado, fica melhor”. Será que temos que chegar ao ponto de gelar os produtos ruins para que eles se tornem ingeríveis? Prefiro o meu chocolate habitual, quente ou gelado, com açúcar, gordura e lactose, pelo menos tenho a impressão de estar consumindo algo de verdade, e não um shake com cor de chocolate. Parti para o óleo de coco, que há meses explodiu na mídia como a solução para a queima de gordura. Ainda não entendi como um produto repleto de gorduras saturadas pode ajudar na queima de gordura corporal e promover perda de peso.

Outro dia, ouvi de um médico endocrinologista o seguinte comentário: as pessoas querem ser emagrecidas, ao invés de emagrecer. Isso explica o porquê de a cada semana as revistas lançarem uma nova dieta, do aumento expressivo da disponibilidade de produtos que prometem emagrecimento rápido, das clínicas de estética, dos cremes para redução de medidas, do shape, ultra shape, ultrassom e todos os ultra emagrecedores que iludem os reles mortais em busca do corpo perfeito e da “saúde”. Afinal, ser magro é ser saudável, certo? Nem sempre. Mas isso fica para outra oportunidade.

O que me intriga acima de tudo, é um congresso desta magnitude, cujo público-alvo são nutricionistas e profissionais da saúde, não contar com nenhum estande ou palestra sobre alimentação saudável. Provavelmente porque este é um tema sem graça, batido e que todo mundo já deve saber. No entanto, tenho a impressão de que os nutricionistas estão se afastando cada vez mais deste conceito, e se aproximando da nutrição à base de cápsulas, shakes, tabletes e tudo o que se possa imaginar, exceto o alimento em si. Ou melhor, exceto a comida em si. Afinal, nós, nutricionistas, trabalhamos com alimentos e comida, não com nutrientes, ou pelo menos é isso que deveríamos estar fazendo e promovendo. Talvez isso explique o aumento da incidência de sobrepeso, obesidade e todas as outras doenças ligadas a hábitos de vida pouco saudáveis. Apesar de saber que o conceito de nutrição funcional não se baseia na prescrição de suplementos e outros produtos, a impressão que tive neste evento foi que a sua utilização é quase inerente a esta prática, como se todos necessitassem de algum elemento extra que fosse essencial para o tratamento nutricional. Porém, não é a deficiência de óleo de coco, picolinato de cromo, cafeína, óleo de cártamo e ração humana que explica a obesidade ou outras doenças crônicas. Ou será que alguém já fez algum estudo duplo-cego randomizado placebo controlado que comprove isso? Nunca vi.

Acredito que o excesso de peso é muito mais uma questão cultural do que meramente nutricional. Quando pensamos na Nutrição, a única coisa possível de trabalhar é o equilíbrio entre nutrientes. Quando pensamos na alimentação, precisamos nos atentar aos hábitos de vida, rotina diária, história familiar, memórias alimentares, influência das emoções na ingestão alimentar, conhecimentos culinários, organização para comprar alimentos, disponibilidade de tempo, e vários outros fatores que estão muito acima da nutrição. A cultura atual caracteriza-se pela abundância, imediatismo, produtividade e comodismo. Infelizmente, a alimentação saudável, como se ensinava antigamente, raramente cabe neste cenário. Afinal, se eu paguei pelo rodízio na churrascaria preciso comer até explodir, e não até me sentir satisfeito. Se eu posso esquentar uma lasanha no microondas ou fazer um macarrão em 3 minutos, por que perder tempo cozinhando? Se eu posso tomar uma dúzia de cápsulas e shakes para chegar ao peso que desejo, por que praticar exercícios, comprar os alimentos e prepará-los em casa como faziam as avós de antigamente? Se eu posso subir de elevador ou escada rolante, por que usar a escada fixa? Se eu posso ir de carro, por que ir a pé? Só os trouxas usam a escada fixa e andam a pé. Os espertos de verdade não se dão a este trabalho.

A cultura atual está aumentando o número de casos de doenças mentais na população em geral, principalmente a depressão. Alguns dizem que estamos “super diagnosticando” os depressivos, e que qualquer tristeza vira depressão. A indústria farmacêutica comemora a alta nas vendas da fluoxentina, sertralina e toda a classe de antidepressivos. Grande parte dessas pessoas acaba ganhando peso, ou já estava com excesso de peso antes do diagnóstico psiquiátrico. Certamente grande parte delas faz uma associação, mesmo que involuntária, entre estado emocional e comida. Como porque estou triste, como porque estou feliz, porque estou ansioso, porque estou calmo. Poucas delas se dão conta disso. E poucos profissionais de saúde, principalmente os nutricionistas, sabem lidar com isso, afinal, não somos psicólogos. Então, eu questiono: se a maioria dos produtos disponíveis hoje visa a redução do apetite e o aumento do gasto calórico diário, será que estas pessoas se beneficiariam do seu uso? Quem come de acordo com o estado emocional, pouca importância dá para o apetite ou saciedade, pois o alimento nem sempre enche só o estômago, mas também preenche o coração e a alma. Posso prescrever 1000 cápsulas que promovam saciedade, que elas não farão efeito algum na redução do peso. É a velha história: está com muita vontade de comer doce? Coma logo o doce, pois se for disfarçar com fruta e gelatina diet, no final vai comer o doce do mesmo jeito.

Em resumo, a minha reflexão é sobre o caminho que a nutrição está tomando nos últimos anos. Infelizmente, vejo que estamos nos aproximando do "nutricionismo", neologismo que o jornalista americano Michael Pollan coloca em seu livro "Em defesa da comida". Uma ciência bitolada, que está tornando as pessoas menos saudáveis e mais preocupadas com aspectos irrelevantes de alimentação, e que grande parte dos nutricionistas está promovendo. Sinto-me uma ovelha negra no mundo dos suplementos, nutrigenética e nutrigenômica, mas tenho a consciência tranquila de saber que trabalho com comida e com seres humanos, e não com máquinas metabolizadoras de calorias e nutrientes.




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