Nutrição
O calabouço da dieta, em uma vida de regras tristes.
Dentre as poucas certezas que tenho, uma em especial, insiste em se fortalecer. Incomoda, atrapalha, entristece...
Eis que nós nutricionistas somos grandes promotores dos transtornos alimentares.
Essa minha certeza petulante não vem de graça, ela me traz algo complicado na pratica profissional: a consciência.
Pode parecer loucura, mas ter a consciência de que aquelas minhas palavras, as minhas explicações e qualquer indicação na prescrição, possam ser (de algum modo) estimulante de um transtorno alimentar é, para mim, uma grande tortura. Mesmo.
Se esforçar ao máximo para que isso não aconteça é mais do uma norma pessoal, é um objetivo da minha vida.
Costumo brincar que, ao prescrever uma dieta, eu tenho que pedir licença ao paciente. É como se eu estivesse entrando na sua casa, abrindo a geladeira, bisbilhotando a gaveta, sentando na sala e mudando o canal da tv. Me sinto verdadeiramente constrangida de fazer isso tudo sem pedir licença, sem explicar o que faço ali, e o motivo das minhas atitudes e escolhas. Afinal, aquilo que acordaremos em conjunto fará parte da sua rotina... Não era essa a ideia? Pois então, toda mudança demanda responsabilidade e respeito.
Quando passeamos pela vida temos, ao longo dessa jornada, objetivos variados, focos diferentes, intenções e aspirações que se modelam de acordo com o tempo e o espaço.... Priorizamos tantas coisas diferentes! É o vestibular para uns, as provas finais para outros, a promoção em vista ou o curso fora do país... Tem vezes que é o casamento da noiva, a formatura do primeiro filho, ou a novidade de ser avó! É a primeira gestação, a segunda, a terceira... É o cuidado dos filhos, ou o dos pais idosos, ou o da própria felicidade. É a viagem... I almoco com a familia... O final de semana que está por vir...
Muitos são os focos, os motivos e os seus momentos.
E aí, quando no meio disso tudo, se resolve seguir uma alimentação melhor, mais saudável, com boas orientações, é preciso lembrar que a vida irá continuar a ter todas as suas outras prioridade. Não irá se resumir apenas à dieta. Ela sozinha, não deve, não pode, não precisa, ser o foco de tudo. Será que notamos isso? Será aceitamos isso? Ou que estimulamos isso?
Na orientação nutricional, temos (e o colega de área há de concordar) que dar bastante ênfase ao alimento, e na rotina que o abraça... Mas às vezes... Será que não perdemos a linha?
Para nós - ao menos para alguns de nós - é ok pensar nisso grande parte do tempo. E apesar de não sermos fiscais da alimentação, as regras, a rotina, os alimentos fazem parte do nosso trabalho, da nossa pratica diária, são ferramentas do dia a dia... Mas... Será que é bacana forçar isso na vida de quem tem tantos outros focos?
Orientar é uma coisa. Mandar é outra.
Compartilhar ciência é uma coisa. Ser taxativo é outra.
Prescrever dieta com o paciente é uma coisa. Restringi-lo a uma rotina que não lhe cabe é outra.
Ter que fazer dieta todos os dias cansa.
Ter que pensar para comer sempre, o tempo todo, cansa muito.
Ter que dizer não o tempo todo, cansa para além de muito.
A disciplina só é boa quando o seu limite é a felicidade.
Quando passamos deste limite, a disciplina é um calabouço. Daqueles bem profundos em que a culpa e os comportamentos compulsivos são mais fortes que o próprio benefício da "dieta saudável".
Tomara que, a cada dia que passe, os colegas de área notem isso. E que, desta consciência, venham melhores condutas. Menos duras. Mais abertas e mais realistas.
Tomara que, desta consciência, venham explicações mais coerentes e mais respeito ao paciente. E que eles (sobretudo elas) diminuam a culpa, sorriam mais, e conheçam uma nutrição com alma, que aceita a vida com seus prazeres (até mesmo os alimentares!).
Tomara que essa seja uma nova certeza para mim. Que não incomode, não atrapalha nem entristece... Pois, a despeito de qualquer objetivo, no final de tudo, o foco é mesmo ser feliz.
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