Nutrição
Colegas, olhem nossas crianças!
Queria pedir licença e endereçar o texto de hoje aos meus caros colegas nutricionistas.
Escrevo àqueles que, assim como eu, acreditam na ciência e, sobre tudo, a respeitam.
Àqueles que compreendem que comer deveria ser, antes de tudo, uma atividade cheia de prazeres, capaz de nutrir o corpo e as memórias.
Àqueles que percebem o paciente enquanto indivíduo especial e único, que carrega consigo um metabolismo, uma história e um contexto. Que os olha nos olhos, lhe explica, e o ouve com atenção.
É pra estes colegas que escrevo.
Queridos, vocês já notaram a quantidade de crianças preocupadas com o peso?
Com a "gordura localizada"? Com suas formas físicas?
A quantidade de jovenzinhos que se propõe a fazer dieta?
Pois então... Eu também notei!
E confesso: fiquei com medo.
Medo dos objetivos e dos discursos. Do grau de importância que se dá ao corpo e da redução da felicidade à aparência física.
Medo do conceito de que se tem de "certo" e "errado", de "emagrecer" e "engordar", da "beleza" e da "feiura" (na eterna dicotomia do "bom" e do "ruim").
Medo do modo com que as gostosuras da infância sucumbem à rigidez das regras. Mais ainda, da imposição social destas regras e, de como "aceitamos" que elas nos sejam impostas.
Medo dos valores.
Estamos diante de um legião de pessoinhas que, em idade de pular amarelinha, brincar de esconde-esconde e comer pipoca, estão se preocupando com seus contornos físicos. Um grupo de pequenas mocinhas que entram no consultório por vontade própria, na busca de um aconselhamento nutricional... Um aconselhamento que, claro, promova "perda de peso", redução, "enxugamento". Jovenzinhas que, quando indagadas quanto ao motivo da vinda ao consultório da nutricionista respondem sem pestanejar: "para ficar mais magra e mais bonita". Como se sinônimos fossem.
Como faremos então?
Que sinuca de bico perigosa essa, não é?
A nossa loucura social que demanda a magreza-da-beleza-feminina e o non-sense-da-barriga-chapada, chegou naqueles que serão o futuro. Chegou nos pequenos. E, pelo que me parece, chegou bem cedo...
Em um estudo muito bem conduzido pela Universidade Berkely (nos Estados Unidos, realizado e publicado em 2013), mais da metade das garotas da terceira à quinta série se diziam insatisfeitas com seus corpos - alegando que o motivo maior era o "excesso" de peso, muito embora apenas um quarto realmente atingisse essa classificação antropométrica.
Na evolução deste estudo, em nova publicação em 2014, foi notado que o desejo principal de meninas de 11 a 17 anos era a perda de peso. Repito: de 11 à 17 anos. Nosso marco inicial aqui é de 11 anos (on-ze-anos). Nesta pesquisa, o discursos das mocinhas referenciou claramente a "necessidade de ser
ultra-magra para se ter sucesso" e considerar uma prioridade "assemelhar-se a uma
top-model" para ser aceita.
Outro estudo, em final de 2014, que se propôs a avaliar influência midiática no comportamento e na auto-imagem das crianças, apresentou resultados escandalosos: pouco mais de um terço das crianças de 6 a 8 anos de idade acham que o "corpo ideal" é mais magro que o seu, e um quarto das crianças de 7 a 8 anos já tentou fazer alguma restrição alimentar (lá denominada e referida pelos próprios jovenzinhos como "dieta").
Caros colegas, notem que estes são apenas três bons (sérios e relevantes) estudos dentre tantos outros que temos. As mais diversas áreas do conhecimento se preocupam em abordar o tema e, no meu ponto de vista, estamos bem no centro desta questão. Não podemos ficar calados diante dos resultados catastróficos que não cansam de aparecer e da responsabilidade que, de certa forma, a nossa profissão nos trás.
Ao escolhermos a nutrição estávamos, na verdade, escolhendo uma ciência espetacular, que unifica um conhecimento bastante técnico, com a prática diária, considerando os prazeres da alimentação e a relação afetiva e emocional que travamos com a comida e com o ato do consumo. Estávamos escolhendo aturar com a diversidade e a individualidade orgânica, em busca da qualidade de vida e da saúde. Para os que sabiam que trilhariam a área clínica, estávamos decididos a atuar em conjunto com nossos pacientes, na mais verdadeira harmonia (alimentar e de relacionamento, de respeito). Não foi? Não eram estes os nossos preceitos? A nossa motivação?
Pois então... E agora?
Claro, meus caros, que nosso controle frente a isso tudo é pequeno. Que não somos nós que determinamos os caprichos estéticos, e que não somos nós que pegamos "ninguém pelo braço" para lhes introduzir uma dieta goela a baixo. Mas, até que ponto será que nós não fazemos parte desta indústria? Até que ponto nossas orientações não corroboram para este cenário? Principalmente quando não estamos preparados para considerar os nossos pacientes inseridos nesse universo de desejos e privações? Quando aceitamos em retirar a cor e o sabor da vida dos outros em prol do tão falado "
foco"? E quando estes são jovenzinhos? Mocinhas e mocinhos?
Nossa responsabilidade é com a saúde. E saúde é muito mais do que silhueta e contornos. Saúde é muitos mais do que "certo" e "errado". É, sem a menor dúvida, muito mais do que escolhas saudáveis.
A meu ver, a saúde começa na vida fora do calabouço do corpo ideal e do comportamento que ele demanda. Saúde está na liberdade da criança em ser como é. Está bem longe de regras que lhe prometa "sucesso pela beleza".
Que possamos refletir.
Que essa reflexão nos dê coerência.
Que nossa prática diária seja mais compreensiva.
Que tenhamos capacidade de trazer um pensamento e uma abordagem mais humana.
Que nossas crianças comam sem culpa, e que desejem um passeio no parque e um balão colorido, não um corpo novo.
Com carinho,
Bia.
Dos estudos citados:
(1) Umberable Weight, Susan Bordo et col, Berkeley: University of California Press. oct. 2013.
(2) Umberable Weight Keeps the Same, Susan Bordo et col, Berkeley: University of California Press. apr. 2014.
(3) https://www.commonsensemedia.org/
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